João Pataco II
João Pataco, um homem que vivei na rua mais de 40 anos, que representa os muitos milhares de pessoas que perderam tudo, fruto de um paradigma consumista, muito disfarçado, mas sempre presente na nossa sociedade capitalista onde os únicos que lucram são os banqueiros, os \"donos do mundo\".
“Devia estar num lar”, dizem alguns, preocupados com os sem-abrigo que desfeiam a cidade e incomodam as consciências.
Vendo bem, era muito mais cómodo – para ele, que teria comida, um teto e um banho, e principalmente para nós, que não teríamos de vê-lo a lembrar-nos a tristeza, a solidão e a miséria humana.
Mas ele não quer, não aceita que lhe imponham uma vida espartilhada entre paredes e horas. Prefere, apesar de tudo, sonhar que é livre e que ninguém, a não ser ele próprio, lhe comanda o destino – vida ou morte. Esta, afinal, é mais do que certa. Prefere esperar por ela cá fora, contando pássaros e estrelas e partilhando a cidade com os outros, na falsa ilusão de uma vida normal.
Liberdade ilusória. O Pataco conta pássaros e estrelas, mas não pode entrar onde quer nem quando quer.
Liberdade ilusória, porque no fundo não foi uma escolha dele. O destino tirou-lhe a vitalidade e nesse roubo foi-se a hipótese de escolher o que quer que fosse.
Ilusão de liberdade, ainda, porque nem nas coisas mais elementares há uma escolha. Come o que lhe dão, dorme no banco que estiver desocupado e anda pela cidade enquanto lho permitirem.
De seu, tem um saco, a muleta e toda uma vida para contar.
Tem tanto para dizer, o Pataco. Basta que o oiçam. Ele tem todo o tempo. Nós não. Aliás… se virmos bem, que diferenças tão grandes é que existem entre nós e os Patacos? Às vezes é um momento, um acaso, uma escolha. É isso que faz a diferença e nos coloca no limiar entre o abismo e o lado de cá do muro, entre o desespero e a segurança.
Quem és afinal, Pataco? Que outro poderias ter sido? E nós?
Ele calou-se, exausto. Há muito que não falava tanto. Agora fechou-se em si. Talvez noutra hora continue. Tem tanto para dizer. Mas a vida, madrasta, cansou-o. Hoje já falou demais. Amanhã…quem sabe?
Texto – Maria João Ruivo
José Franco, Portugal, Lajes das Flores